quarta-feira, abril 12, 2006

Crescer II O

Isto de não se saber quem é o pai, tem que se lhe diga... traz complicações levadas do caneco... mais um trauma. É o trauma do filho-da-puta. Em Arghalhargh todos têm este trauma. Por mais que se queira, a coisa só se complica. Não é que todos sejam descendentes-da-meretriz, alguns não o são. Mas adiante.

Ninguém pode alegar que: coitadinho-de-mim que o meu pai bate na mãe e eu vejo tudo lá em casa; ou tenho de ajudar a família que a conta não chega até ao fim do mês; ou mesmo a minha mãe anda com outro homem que não é o meu pai e eu não sei onde anda esse gajo; ou ainda que a minha mãe anda a dar o coiro na curva da estrada e eu sou visto de soslaio pelos colegas. Convenhamos para ter umas desculpas convincentes é preciso ter argumentos convincentes... Como se pode numa escola, por exemplo, alegar que se é coitadinho para os professores se condoerem e não lhe atribuirem as notas que merece por não ter feito a ponta de um chavelho durante o ano? Bem, é sempre possível dizer que eu sou filho de um cabrão que nem sequer conheço! É assumir directamente o que se é: filho-da-dita.

Como poderia ser ofendido um árbitro num jogo desportivo sem se conhecer o pai e mãe? Um condutor desmiolado? Um bêbedo na sarjeta? Um vizinho numa querela?

Como deve ser, e como todos, ou quase, não conhecem seus pais, e estão em pé de igualdade, esses argumentos perdem toda a força... “Ora bolas, grande avaria, eu também não conheço o meu pai e nem por isso estou para aqui a chorar baba e ranho, como tu ó meu paspalhão!”

Por outro lado quase ninguém sabe quem é a mãe, e tem, o trauma correspondente. O de filhinho abandonado à sua sorte. Coitadinho-de-mim que nem conheço a minha santa mãezinha! E por aí adiante.

Assim ninguém pode ir fazer queixinha à mãe, que não está por ali disponível... Nem agarrar-se à barra da sua saia, pelo mesmo motivo. Deste modo fazer queixinhas daquele miúdo, na escola, que me anda a extorquir os trocos para o lanche, parece-me algo complicado... se se chatear um adulto próximo este logo lhe dirá: “ó puto, vai mas é chatear a tua mãe” e o problema fica resolvido por ali mesmo!

Se se pede a piedade do agressor, a coisa toma contornos semelhantes que resolve na hora lembrar-se da sua condição e lhe dirá face ao pedido de clemência de “vá lá apieda-te que não tenho mãezinha” o seguinte: “Ora bolas, grande avaria, eu também não conheço a minha mãezinha e nem por isso estou para aqui a chorar baba e ranho, como tu ó meu paspalhão!”

Virando a coisa ao contrário (sacode-se o saco a ver se sai algo de jeito) ninguém pode pedir esmola para seus filhinhos inanimados pela fome e frio... como não sabe quem são , sequer sabe se estão com fome ou se tremem de frio, ninguém deita a moedinha sonante no pratinho plástico poisado no passeio.

Ninguém mete uma cunha para conseguir um emprego para o seu descendante! Isto até poderia ser bom, em qualquer local, país ou civilização... mas lembrai-vos, incautos, que falamos de um planeta de outra galáxia, de outro mundo, calhando de outro universo... o trauma gerado por este facto é o de, no leito de morte, chegar à conclusão de não ter feito nada pelos seus filhos, coisa grave e mal vista pelo povo de qualquer civilização!

Que dirá o transeunte face à previsão da cigana, que lhe leu o destino dizendo que nunca irá conhecer os seus filhos; que dirá o juiz face ao pedido de libertação condicional do prisioneiro que lhe diz nunca ter, em todos os anos de encarceramento, conhecido seus filhinhos? Obviamente : “Ora bolas, grande avaria, eu também não conheço os meus filhos e nem por isso estou para aqui a chorar baba e ranho, como tu ó meu paspalhão!”

Para terminar, e para contrabalançar toda esta tragédia, ninguém se preocupa em Arghalhargh, se os filhos são, mesmo, do marido da mãe!